espoleta

espoleta (al. zündhütchen; esp. fulminante, cebo; fr. amorce;  ing. primer; it. innesco, spoletta)

Sistema de ignição da carga propelente.1

Os sistemas de ignição (ou iniciaçãoI) da carga dos cartuchos das armas de fogo portáteis comumente utilizam espoleta (iniciador) de percussão por impacto mecânico, dentre estas, as espoletas de fogo central — Boxer, Berdan e Bateria — e as espoletas de fogo circular (ou radial)II. Como também há outros tipos de sistema de ignição2, incluindo os promovidos por espoletas elétricas3.

Quanto a etimologia, em português, a palavra “espoleta”  é originária do vocábulo italiano “spoletta” (cf. DELP, HSS s.v.), ambas, inclusive, com o mesmo significado, ou seja, engenho que objetiva iniciar a ignição do propelente4. Já o termo “iniciador” seria a tradução mais próxima para o termo inglês “primer”, visto que a aludida palavra inglesa deriva do latim primarius (cf. OED, s.v. primer), i.e., primeiro, primário et al., ou seja, aquilo que principia, no caso, a ignição. Assim, a equivalência dos significados linguísticos citados aduz a traduzir, sem qualquer prejuízo, “primer” como “espoleta” ou “iniciador”, de modo que em inglês, primer, significa tanto o sistema de ignição como o componente iniciador que pode ser destacado do cartucho1.  Entretanto, dicionários linguísticos de português consultados (AUL, AUR, BRB, GDLP, HSS) ainda não registram o termo “iniciador” como sinônimo de termos que lhe são aqui correlatos:  estopilha (cf. AUL s.v., HSS s.v.), escorva (cf. AUL s.v., AUR s.v., GDLP s.v., HSS s.v.) e disparador (cf. GDLP s.v.). Inobstante a omissão de linguistas, o termo “iniciador”, na acepção de espoleta e/ou seus sinônimos, já se encontra registrado na literatura especializada, a exemplo de PMD (s.v. primer) e ZNT (p. 6-7).


DISCUSSÃO

I) Cartucho de fogo circular não tem espoleta?
Alguns autores descrevem, explicitamente, os cartuchos de fogo circular como desprovidos de espoleta, como SVJ (p. 132, grifo meu): “Nos cartuchos de fogo circular, por não possuírem espoleta, …“, e TOC (p. 435, grifo meu): “Os cartuchos de fogo circular, cujo calibre mais usado é o .22, por não possuírem espoleta ou cápsula de espoletamento …“, não obstante, o mesmo autor (i.e., TOC), contrariamente ao acima citado, em seção anterior (op. cit., p. 247, grifo meu), descreve os cartuchos de fogo circular como aqueles que “… não tem uma cápsula de espoletamento como elemento diferenciado […] a cápsula de espoletamento é o próprio fundo do estojo…”, o que revela notória contradição, pois, segundo a última passagem, os cartuchos de fogo circular passaram então a ter cápsula de espoletamento, a qual apenas não se trata de um elemento diferenciado, o que é claramente diferente de não ter. Ora, se os cartuchos de fogo circular são destituídos de espoleta, como então seria possível a ignição da carga propelente? Provavelmente, os aludidos autores chegaram a tal entendimento por considerarem que a definição de espoleta se restringe ao artefato que possa ser destacado (ou “diferenciado”) do estojo, o que denota evidente predileção pela forma em detrimento da razão finalística, que é a promoção da ignição do propelente, independentemente de ser empreendida por um “elemento diferenciado” ou não, desta forma, caracterizada pela presença de um sistema, que se trata de componentes interdependentes que visam à produção de certo resultado.

Quanto a mencionada noção de sistema, em relação aos cartuchos  comumente utilizados em armas de fogo portáteis — não obstante a citada noção se aplique a qualquer outro —, a espoleta do tipo Bateria se trata de um sistema de ignição completamente autocontido, pois todos os componentes necessários ao cumprimento de sua finalidade estão agrupados em um objeto singular; diferindo, portanto, da espoleta do tipo Boxer, que necessita de região própria para fixação no estojo (bolso da espoleta), local onde também é provida a passagem (evento) para as chamas resultantes da queima da mistura iniciadora; por sua vez, a espoleta do tipo Berdan, além de demandar os requisitos da citada anteriormente, é desprovida de bigorna,  a qual é parte do estojo; e no caso da espoleta de fogo circular (ou radial), a cápsula é a própria base do estojo, achando-se a mistura iniciadora alojada na periferia radial do culote da referida base, e a função de  bigorna é exercida por componente da arma de fogo: plano da região da culatra do cano, nas pistolas e rifles, e a região posterior do tambor (plano da culatra do tambor), nos revólveres. Deste modo, como demostrado, há de se considerar o arranjo de ignição do propelente como um sistema propriamente dito, pois envolve diversos componentes que, dependendo do tipo do sistema de iniciação, pode atingir a sua finalidade por meio dos elementos autocontidos em um artefato singular (e.g. espoleta Bateria) ou depender de outro componente do sistema de ignição, o estojo (e.g. espoletas Boxer e Berdan), como também, além do estojo, pode fazer uso de componente da arma de fogo (e.g. espoleta de fogo circular), o que coaduna com a definição de espoleta como sistema explicitada em HRD (s.v., p. 328), como também de modo implícito por AFTE1 e SAAMI1.

Portanto, a posição dos citados autores, SVJ e TOC, i.e., acerca da inexistência de espoleta nos cartuchos de fogo circular, está em desacordo com as referências supracitadas, inclusive com outros textos consultados.5

 

NOTAS

1) Definição cf. HRD (s.v., p. 328). BSD (p. 61) define como “sistema de ignição por percussão das armas de fogo”. AFTE (s.v.) e NRA (s.v) definem como “componente de ignição dos cartuchos”, não obstante, AFTE (s.vv. centerfire primer, rimfire primer) quando da descrição das espoletas de fogo central e de fogo circular as definem como “primer system”, ou seja, sistema de iniciação, como também, na descrição dos sistemas de ignição de armas de fogo (op. cit., seção 12 – Firearm Ignition Systems) inclui, dentre muitos outros, as de fogo circular, de modo que é possível concluir que a definição de espoleta (primer) da AFTE se aplica tanto aos componentes como, de forma geral, a todo sistema de iniciação da carga propelente, concordando assim com HRD (loc. cit). Do mesmo modo, SAAMI (s.v. primer) define espoleta (“primer”) restringindo a acepção do termo às espoletas de fogo central, não obstante, quando da definição das espoletas de fogo circular (op. cit., s.v. rimfire primer, grifo meu) também a define como espoleta, a saber: um tipo de espoleta encontrado na cavidade circunferencial ou anel da munição de fogo circular (“A type of primer found in the circumferential cavity or rim of rimfire ammunition. Usable only with rimfire guns”). 

Outras definições, com diferentes graus de extensão e profundidade,  podem ser encontradas em BNT (amorce-primer s.v.), MUO (s.v.), OLV (s.vv. espoleta, espoleta circular), PMT (s.vv. espoleta, fogo circular, fogo central, rimfire), RNK (p. 410-1), SAAMI (s.vv. primer, centerfire primer, rimfire primer), STD (svv.  primer, primer-centerfire, primer-rimfire), ZNT (p. 6-7).

2) Cf. AFTE (seção 12 – Firearm Ignition Systems) para a descrição de outros vinte e seis tipos de sistema de ignição de armas de fogo portáveis.

3) Cf. AFTE (s.v. ), SAAMI (s.v.).

4) Cf. DELI (s.v. spoletta, tradução minha), mecanismo destinado a  provocar explosão da carga dos projéteis (“congegno destinato a provorare l’esplosione della carica interna dei proietti”).

5) Cf. AFTE (s.v. primer: rimfire primer, annular rim), BSD (p. 61), DIM (p. 17, 19), HRD (p. 50, s.vv. primer, primer-rimfire), OLV (s.v. fogo circular), PMT (s.vv. fogo circular, rimfire), RAB (p. 153), RNK (p. 411), SAAMI (s.v. rimfire primer), STD (s.v. primer, rimfire), WLW (p. 13, passim).

 

Como citar: espoleta. In: SOUZA, Hudson C. S. de. Dicionário de Balística Forense - Edição Crítica. Disponível em https://dicionario.balistica-forense.com/espoleta/. Acesso em: 05/01/2025. eBook. ISBN: 978-65-00-77905-9.

 

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